Desde
que o mundo é mundo, os hemisférios têm estações invertidas. Quando é verão no
Sul, é inverno no Norte. Quando faz frio em uma metade, tem calor na outra.
Aprendi isso nas aulinhas de Estudos Sociais, na 3ª série do primário, atual
Ensino Fundamental. Essa verdade basal foi contrariada em 2024. Em junho,
parecia ser verão nos dois hemisférios ao mesmo tempo, com recordes de
temperatura registrados tanto na América do Sul quanto na Europa e na América
do Norte.
O
calorão globalizado é só uma das consequências da mudança climática que vem se
intensificando, desde o início da Revolução Industrial. A se confirmarem as
previsões dos cientistas, 2024 será o ano mais quente da história… de novo.
2023 já tinha sido o ano mais quente. E antes, 2022. Vocês entenderam. Não
adianta mais imaginar o que fazer para impedir a mudança. O foco agora é lidar
com seus efeitos, que incluem não apenas eventos climáticos extremos e cada vez
mais frequentes. Mas, também, com a piora concreta na vida cotidiana de bilhões
de pessoas - pessoas pobres, em primeiro lugar.
E
de que forma os Estados Unidos - o país que mais emite gases do efeito estufa
per capita e o maior consumidor de bens industrializados do mundo - se
comportam diante dessa realidade? Os Estados Unidos elegeram, em outubro de
2024 (mais uma vez), um presidente que desdenha da mudança climática,
publicamente comprometido em apoiar a produção e o consumo de combustíveis
fósseis.
Como
um dos motores da economia mundial, os EUA ditam muitos dos caminhos que o
resto do mundo tomará no enfrentamento às mudanças climáticas. Para entender
quais serão esses caminhos durante o segundo governo Donald Trump, eu me
embrenhei no conteúdo de um documentinho chamado 2025 - Mandate for Leadership:
the Conservative Promise. O PDF de 922 (!!!) páginas é um “manual prático” para
a implementação do Project 2025, um “movimento
histórico, construído em conjunto por mais de 100 respeitadas organizações
conservadoras, para derrubar o Deep State e devolver o governo ao povo”.
Trump
buscou, mais de uma vez, se dissociar publicamente do Project 2025 durante sua
campanha. Mas a iniciativa, coordenada pelo think tank direitista Heritage
Foundation, será, na prática, a agenda cumprida pelo segundo governo do
bilionário. De forma a obter um levantamento bem objetivo, peguei o calhamaço e
dei um CTRL+F em termos ligados à mudança climática e à sustentabilidade em
geral - levando em conta que, entre suas diretrizes principais, o Project 2025
vai buscar “liberar a produção de energia
nos EUA para reduzir preços”. Contabilizei quantas vezes o Mandate for
Leadership cita esses termos e analisei o discurso e as propostas para os
temas.
Apertem
os cintos. E quem puder, ligue o ar condicionado.
Como o 2º governo Trump vai tratar a
emergência climática:
● Mudança climática (climate change): 55
menções no Mandate for Leadership. O documento afirma (p. 257) que, com
sua “política extrema de mudanças
climáticas e sua agenda contra combustíveis fósseis”, a administração Biden
“piorou a insegurança alimentar global,
aumentou os custos de energia, causou fome e violência política”. Mais
diretamente ao ponto, a ideia é de que o governo dos EUA deve “cancelar todos os programas, agências e
diretivas voltadas ao avanço do Acordo de Paris (…) e encerrar a colaboração
com fundações progressivas, corporações, instituições internacionais e ONGs que
advogam em nome do fanatismo climático” (p. 257-256). No plano econômico, o
setor de mudança climática do Departamento do Tesouro deve ser eliminado, bem
como “qualquer acordo climático que seja
inimigo da prosperidade dos EUA” (p.708-709).
Outros
trechos do documento enfatizam como “a
‘agenda esquerdista de engenharia social’ (aspas do original) (…) empoderou
ativistas da mudança climática às custas dos trabalhadores dos EUA” (p.
286); que, em relação ao agronegócio, o governo deve colocar a produtividade e
a acessibilidade financeira aos alimentos na frente de “questões secundárias”
como a mudança climática (p. 293); e que a atual crise energética não foi
criada por falta de recursos e sim por “políticas ‘verdes’ extremas”, que
criaram uma “escassez artificial” de energia (p. 363-364).
● Combustíveis fósseis (fossil fuels):
14 menções.
Os EUA devem “encerrar a guerra
não-provocada aos combustíveis fósseis” (p. 286). Precisam “trabalhar com o México e com o Canadá (…)
para reduzir a dependência de fontes distantes de combustíveis fósseis” (p.
184). E vão derrubar “requisitos de
redução de consumo de combustíveis que nunca foram aprovados pelo Congresso e
que não podem ser cumpridos pela maioria dos veículos movidos à gasolina”
(p. 287). Aspectos ambientais como a mudança climática não devem ser
consideradas como razões para deter projetos de extração de gás natural (p.
408).
● Carbono (carbon), como em “gestão” e/ou
“captura” de carbono: 30 menções. As mudanças propostas começam com a
extinção do Escritório de Gestão de Energia Fóssil e Carbono (FECM). Se for
impossível, o órgão deve reassumir sua “missão
de garantir a segurança energética por meio de combustíveis fósseis” (p.
377). Outros objetivos passam por encerrar o uso de programas de captura e
estoque de carbono (p. 376), acabar com programas de subsídios à
descarbonização (p. 377) e eliminar o Grupo de Trabalho Interdepartamental
sobre o Custo Social do Carbono (p. 94).
● Renovável (renewable), como em
“energia renovável”: 38 menções. Todos os programas de incentivo à
produção de energias renováveis devem ser suspensos, assim como a “guerra ao
petróleo e ao gás” (p. 365). Fontes renováveis integradas à rede nacional de
distribuição “diminuem a confiabilidade do sistema” e devem ser limitadas (p.
401). Os investimentos em energias renováveis não devem ser justificados por
seus “vagos benefícios sociais” (p. 406).
● Emissões (emissions): 23 menções. O governo
Trump deve encerrar o Programa de Reporte de Emissões de Gases do Efeito Estufa
para todas as fontes que já não sejam reguladas - pois representa um “peso
inútil” para as empresas. O foco da gestão energética deve ser desviado da
redução de emissões de carbono para a garantia do acesso à energia (p. 378).
● ESG: 37 menções. As políticas
públicas voltadas ao meio ambiente, ao social e à governança só merecem
desprezo dos Republicanos. “Políticas
guiadas por interesses ideológicos estão dirigindo grandes quantias de dinheiro
a grupos privilegiados e tornando a América dependente da energia fornecida por
adversários como a China” (p. 363-364). Fundos de pensão governamentais
deixarão de considerar aspectos ESG em seus investimentos (p. 606). O Congresso
deve se opor a qualquer proposta de redefinição de propósitos de setores da
economia em nome de fatores ESG (p. 832). Para encerrar qualquer dúvida, o
documento cita a célebre frase de Milton Friedman na página 871: “A única responsabilidade social de uma
empresa é a de aumentar seus lucros”.
Nenhum
desses direcionamentos parece muito surpreendente, ainda que seja chocante
lê-los de forma tão explícita e detalhada. Para além de todo histórico de Trump
e da direita norte-americana em relação à mudança climática, a campanha
vitoriosa recebeu uma bolada em doações da indústria de óleo e gás. As
montadoras de automóveis nos EUA também estão sorrindo de orelha a orelha com a
vitória Republicana. (Mesmo que o empresário mais beneficiado seja conhecido
por produzir carros elétricos).
Quando
ainda se pensava em formas de evitar a mudança do clima, cientistas apontavam
para os riscos da manutenção de um modelo econômico conhecido como
business-as-usual - no qual não haveria esforços coordenados para reduzir
emissões e acelerar a transformação energética para combustíveis renováveis. O
cenário implicaria, até 2050, em consequências catastróficas como aumentos
significativos dos níveis dos oceanos, elevação de até 100% nos níveis de
carbono na atmosfera e, claro, temperaturas globais cada vez mais altas.
O
retorno de Trump à Casa Branca representa um passo além (aquém, na verdade) do
business-as-usual. Representa a vitória de uma coalizão que despreza a
sustentabilidade ambiental e social dos EUA e, por tabela, a sustentabilidade
do resto do mundo. É improvável que a nova gestão consiga concretizar todas as
propostas do Project 2025. Mesmo assim, um governo Trump mais eficiente e
desimpedido deve promover um tremendo retrocesso nas políticas norte-americanas
de preservação do meio ambiente. Isso sem considerar as iniciativas similares
em outros países, replicadas por governantes que se espelham no bilionário de
tez alaranjada.
Em
2018, às vésperas da posse de Jair Bolsonaro, eu escrevi um texto sobre os
perigos de tratar questões ambientais com um viés ideológico. Quando
governantes (de direita) eleitos passam a olhar a preservação do meio ambiente
como uma bandeira esquerdista, encontram uma justificativa ideal para não fazer
coisa alguma, ou pior: desfazer o pouco que já foi feito. Vivemos essa história
entre 2019 e 2022, período marcado pela leniência com a devastação e pelo
desmonte dos órgãos públicos de proteção.
Pode
ser tarde demais para contermos a mudança climática, mas ainda há tempo para
mitigarmos seus piores impactos. E se a iniciativa não vem do Norte, cabe ao
Sul tomar a dianteira. O Brasil vai sediar a Conferência das Nações Unidas
sobre as Mudanças Climáticas de 2025. Somos uma potência global na geração de
energia renovável e na produção de biocombustíveis. E temos a capacidade de
puxar o esforço internacional de cooperação para acelerar a transição
energética. O Project 2025 não precisa ser nosso projeto para 2025. Muito menos
para a eleição de 2026.
Por:
Redação.
Fonte:
Marco Antonio Barbosa.
Foto:
Divulgação.
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